POR ACASO

Marcos Pontes
09/07/2006

Sábado, onze horas da manhã. O sol entrou pela janela do quarto. Muito melhor que a corneta militar anunciando a alvorada. João acordou, olhou no relógio, espreguiçou. O serviço de cadete de dia tinha sido difícil na noite anterior. Fome. Banho rápido, idéias. Bom mesmo era ir para a casa naquele final de semana. Mas demoraria muito. Melhor ficar por perto mesmo.
O ônibus militar para a cidade estava cheio. Todos com a mesma idéia fixa. Competição grande. Desceu na rodoviária. Queria fazer algo diferente. A tabela de horários dos ônibus não mostrava nada interessante. Mais atenção, mais procura. Indecisão. Estacionou um ônibus entre ruídos de ar comprimido dos freios. Pessoas passaram apressadas. “Para onde vai esse ônibus”, perguntou João ao rapaz do guichê. “Descalvado, eu acho.”, respondeu o jovem que mais parecia interessado nas pernas da passageira que, desajeitada, entre tantas malas caindo, tentava manter a compostura, sem esquecer um só momento que vestia uma pequena mini-saia azul.
João esperou. O cobrador também.
Finalmente veio a pergunta decidida: “você quer uma passagem?”. Num impulso, João respondeu que sim. Pagou. Embarcou. Nem sabia bem para onde. Lembrava da mini-saia. Dormiu. Acordou logo. A viagem era curta.
Cidade pequena. A praça central com coreto e circulação era característica. João desceu do ônibus. Mochila nas costas. Sem saber para onde ir seguiu o grupo maior.
Em um ponto de taxi, perguntou sobre hotéis próximos. Indicaram a pousada da dona Joana. Bem pertinho, só duas quadras. Chegou lá. Tudo bem organizado. Cheiro de limpeza. Piso brilhante, vermelhão polido, de cimento. O preço estava nas possibilidades. Aceitou. Deixou a bagagem no quarto: uma mochila branca. Voltou para a praça caminhando lentamente.
O cheiro do final da tarde era perfumado de pau d’alho e do aroma das colônias das pessoas bem arrumadas que por ele passavam.
Chegou na praça. O sino anunciou estridente. Não sua presença, mas a missa das seis.
Sem muita opção, seguiu a multidão. Entrou na igreja. Era católico. Porém, nunca foi do tipo que sabe as músicas da igreja. Nem dos rituais. Sempre ficou meio retraído nessas ocasiões. Em todo caso, entrou na igreja. Poderia “copiar” a maioria. Assim o fez. Fez também o sinal da cruz, bem no meio do corredor central. Sentou discretamente. Ao seu lado, uma simpática senhora dos 50. Ela olhou calmamente para João. Logo reconheceu que não era da cidade. Cidade pequena tem dessas coisas.
Curiosa, perguntou ao rapaz muitas coisas. Quem era, o que fazia por ali. João respondeu a verdade. Ela sorriu. Ele se sentiu bem. Acolhido. Como se estivesse em casa. A missa seguiu. Palavras e sermões. João ouviu, mas sua mente estava confusa. Não seria exatamente para ir à igreja que tinha ido para aquele lugar. Mas era uma experiência interessante, de qualquer modo.
Terminada a missa, saiu caminhando altivo, perdoado, entre a multidão. O ar da noite deu toque especial àquela pequena praça. Havia música. Vinha de auto-falantes. Coreto moderno. Olhou para os lados. Nada prometedor. Na esquina havia uma padaria e muita gente, jovens.
“Vale arriscar!”, pensou. Melhor que o hotel da dona Joana.
Chegou lá. Era realmente uma padaria. Mas também um “point” local. Entrou. Notou instantaneamente que não era bem visto pela população masculina de mesma idade. Coisa de cidade pequena.
Sentou na banqueta próximo do final do balcão. Pediu uma cerveja. Tomou devagar, pensando no que fazer. Notou que ao seu lado havia sentado um outro rapaz. Cabelo cortado, tipo militar. “Quem sabe?” imaginou.
Arriscou uma conversa: “Como vai? Meu nome é João”. A resposta foi amigável. Conversaram por alguns minutos. O rapaz servia em uma divisão de carros blindados do Exército, na mesma cidade de sua Academia.
Continuaram conversando, enquanto outros rapazes da cidade foram chegando.
A partir de um certo momento, João estava tranqüilo. Havia sido aceito pelo grupo da cidade. Agora podia finalmente prestar mais atenção nas garotas de sua idade que, naquele momento, já se mostravam interessadas naquele “forasteiro” desconhecido.
Do outro lado da praça havia um clube. “Brincadeira dançante” era o nome daquele tipo de baile naqueles dias. Foram todos para lá. João entrou junto com o grupo. Coisa de cidade pequena.
Danças, garotas, olhares, conversas, risos. Hora de ir embora. A garoa da madrugada cobria os carros. O cheiro da noite. A arrependimento da palavra não dita. Ela se foi.
O hotel era perto. Iria andando. O grupo de amigos recentes não deixou. Mais do que isso, João não poderia ficar em um hotel. Imagine! Que absurdo! Não era à toa que os hotéis não prosperavam naquela cidade. “Você vai ficar em casa!”, afirmou Dinho. “De jeito nenhum!”, respondeu João cautelosamente, fechando a porta do carro. “Fico aqui mesmo! Amanhã nos encontramos novamente!”
O grupo, barulhento na madrugada, não aceitou aquela resposta, batendo na janela de dona Joana, enquanto os cachorros latiam na rua.
Ela acordou e abriu a janela, passando a chave da porta. João pegou suas coisas. Entrou no carro. Seguiram arrancando ruidosamente.
Dormiria na cama do irmão mais velho de Dinho. Cama de solteiro, ao lado da cama do irmão mais novo. A casa estava em silêncio. Casa grande. Todos dormindo. João, cansado, não hesitou. Trocou de roupas. Deitou. Dormiu.
As muitas cervejas fizeram seu efeito algum tempo depois. João acordou assustado. Mal-estar. Vômito preso na boca. Confusão. “Onde estou?”, perguntava a si mesmo, com a cabeça girando. Na pressa, e sem saber exatamente do lugar, esbarrou na cama do irmão mais novo de Dinho. O menino de dez anos acordou assustado. Ao ver aquela criatura ao lado de sua cama, na penumbra do quarto, com as mãos na boca e olhar desesperado, começou a gritar. Dinho, em estado avançado de sono e embriagues, dormia profundamente. João correu para o corredor da casa. “Onde seria o banheiro? Meu Deus!”
Na primeira possibilidade entrou. Fechou a porta. Liberou o estômago. Situação difícil. Batiam na porta. Eram os pais de Dinho. “Seria um ladrão?”.
Depois de limpar a boca, timidamente João abriu a porta.
Lá fora medo e posição de ataque. Dinho dormia.
De repente, uma voz de esperança: “Você não estava na missa hoje?”, perguntou a mãe de Dinho. João respondeu que sim. O chão ainda parecia ainda o piso de um navio pequeno. Difícil fixar a visão. Ela chegou perto, segurou suas mãos trêmulas. As dela também estavam. “Eu estava sentada ao seu lado. Lembra-se?” João olhou para seu rosto. Sorriu aliviado. “Sim!”
Explicou a situação. Dinho dormia. Tomou um chá quente. Dormiu até tarde.

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