Sábado,
onze horas da manhã. O sol entrou pela janela do quarto.
Muito melhor que a corneta militar anunciando a alvorada. João
acordou, olhou no relógio, espreguiçou. O serviço
de cadete de dia tinha sido difícil na noite anterior.
Fome. Banho rápido, idéias. Bom mesmo era ir para
a casa naquele final de semana. Mas demoraria muito. Melhor ficar
por perto mesmo.
O ônibus militar para a cidade estava cheio. Todos com a
mesma idéia fixa. Competição grande. Desceu
na rodoviária. Queria fazer algo diferente. A tabela de
horários dos ônibus não mostrava nada interessante.
Mais atenção, mais procura. Indecisão. Estacionou
um ônibus entre ruídos de ar comprimido dos freios.
Pessoas passaram apressadas. “Para onde vai esse ônibus”,
perguntou João ao rapaz do guichê. “Descalvado,
eu acho.”, respondeu o jovem que mais parecia interessado
nas pernas da passageira que, desajeitada, entre tantas malas
caindo, tentava manter a compostura, sem esquecer um só
momento que vestia uma pequena mini-saia azul.
João esperou. O cobrador também.
Finalmente veio a pergunta decidida: “você quer uma
passagem?”. Num impulso, João respondeu que sim.
Pagou. Embarcou. Nem sabia bem para onde. Lembrava da mini-saia.
Dormiu. Acordou logo. A viagem era curta.
Cidade pequena. A praça central com coreto e circulação
era característica. João desceu do ônibus.
Mochila nas costas. Sem saber para onde ir seguiu o grupo maior.
Em um ponto de taxi, perguntou sobre hotéis próximos.
Indicaram a pousada da dona Joana. Bem pertinho, só duas
quadras. Chegou lá. Tudo bem organizado. Cheiro de limpeza.
Piso brilhante, vermelhão polido, de cimento. O preço
estava nas possibilidades. Aceitou. Deixou a bagagem no quarto:
uma mochila branca. Voltou para a praça caminhando lentamente.
O cheiro do final da tarde era perfumado de pau d’alho e
do aroma das colônias das pessoas bem arrumadas que por
ele passavam.
Chegou na praça. O sino anunciou estridente. Não
sua presença, mas a missa das seis.
Sem muita opção, seguiu a multidão. Entrou
na igreja. Era católico. Porém, nunca foi do tipo
que sabe as músicas da igreja. Nem dos rituais. Sempre
ficou meio retraído nessas ocasiões. Em todo caso,
entrou na igreja. Poderia “copiar” a maioria. Assim
o fez. Fez também o sinal da cruz, bem no meio do corredor
central. Sentou discretamente. Ao seu lado, uma simpática
senhora dos 50. Ela olhou calmamente para João. Logo reconheceu
que não era da cidade. Cidade pequena tem dessas coisas.
Curiosa, perguntou ao rapaz muitas coisas. Quem era, o que fazia
por ali. João respondeu a verdade. Ela sorriu. Ele se sentiu
bem. Acolhido. Como se estivesse em casa. A missa seguiu. Palavras
e sermões. João ouviu, mas sua mente estava confusa.
Não seria exatamente para ir à igreja que tinha
ido para aquele lugar. Mas era uma experiência interessante,
de qualquer modo.
Terminada a missa, saiu caminhando altivo, perdoado, entre a multidão.
O ar da noite deu toque especial àquela pequena praça.
Havia música. Vinha de auto-falantes. Coreto moderno. Olhou
para os lados. Nada prometedor. Na esquina havia uma padaria e
muita gente, jovens.
“Vale arriscar!”, pensou. Melhor que o hotel da dona
Joana.
Chegou lá. Era realmente uma padaria. Mas também
um “point” local. Entrou. Notou instantaneamente que
não era bem visto pela população masculina
de mesma idade. Coisa de cidade pequena.
Sentou na banqueta próximo do final do balcão. Pediu
uma cerveja. Tomou devagar, pensando no que fazer. Notou que ao
seu lado havia sentado um outro rapaz. Cabelo cortado, tipo militar.
“Quem sabe?” imaginou.
Arriscou uma conversa: “Como vai? Meu nome é João”.
A resposta foi amigável. Conversaram por alguns minutos.
O rapaz servia em uma divisão de carros blindados do Exército,
na mesma cidade de sua Academia.
Continuaram conversando, enquanto outros rapazes da cidade foram
chegando.
A partir de um certo momento, João estava tranqüilo.
Havia sido aceito pelo grupo da cidade. Agora podia finalmente
prestar mais atenção nas garotas de sua idade que,
naquele momento, já se mostravam interessadas naquele “forasteiro”
desconhecido.
Do outro lado da praça havia um clube. “Brincadeira
dançante” era o nome daquele tipo de baile naqueles
dias. Foram todos para lá. João entrou junto com
o grupo. Coisa de cidade pequena.
Danças, garotas, olhares, conversas, risos. Hora de ir
embora. A garoa da madrugada cobria os carros. O cheiro da noite.
A arrependimento da palavra não dita. Ela se foi.
O hotel era perto. Iria andando. O grupo de amigos recentes não
deixou. Mais do que isso, João não poderia ficar
em um hotel. Imagine! Que absurdo! Não era à toa
que os hotéis não prosperavam naquela cidade. “Você
vai ficar em casa!”, afirmou Dinho. “De jeito nenhum!”,
respondeu João cautelosamente, fechando a porta do carro.
“Fico aqui mesmo! Amanhã nos encontramos novamente!”
O grupo, barulhento na madrugada, não aceitou aquela resposta,
batendo na janela de dona Joana, enquanto os cachorros latiam
na rua.
Ela acordou e abriu a janela, passando a chave da porta. João
pegou suas coisas. Entrou no carro. Seguiram arrancando ruidosamente.
Dormiria na cama do irmão mais velho de Dinho. Cama de
solteiro, ao lado da cama do irmão mais novo. A casa estava
em silêncio. Casa grande. Todos dormindo. João, cansado,
não hesitou. Trocou de roupas. Deitou. Dormiu.
As muitas cervejas fizeram seu efeito algum tempo depois. João
acordou assustado. Mal-estar. Vômito preso na boca. Confusão.
“Onde estou?”, perguntava a si mesmo, com a cabeça
girando. Na pressa, e sem saber exatamente do lugar, esbarrou
na cama do irmão mais novo de Dinho. O menino de dez anos
acordou assustado. Ao ver aquela criatura ao lado de sua cama,
na penumbra do quarto, com as mãos na boca e olhar desesperado,
começou a gritar. Dinho, em estado avançado de sono
e embriagues, dormia profundamente. João correu para o
corredor da casa. “Onde seria o banheiro? Meu Deus!”
Na primeira possibilidade entrou. Fechou a porta. Liberou o estômago.
Situação difícil. Batiam na porta. Eram os
pais de Dinho. “Seria um ladrão?”.
Depois de limpar a boca, timidamente João abriu a porta.
Lá fora medo e posição de ataque. Dinho dormia.
De repente, uma voz de esperança: “Você não
estava na missa hoje?”, perguntou a mãe de Dinho.
João respondeu que sim. O chão ainda parecia ainda
o piso de um navio pequeno. Difícil fixar a visão.
Ela chegou perto, segurou suas mãos trêmulas. As
dela também estavam. “Eu estava sentada ao seu lado.
Lembra-se?” João olhou para seu rosto. Sorriu aliviado.
“Sim!”
Explicou a situação. Dinho dormia. Tomou um chá
quente. Dormiu até tarde.
A
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